O quarto está
inabitável. Não tem ninguém em casa e ela vai passar a semana toda sozinha. O
fim de semana foi divertido, mas era segunda e o silêncio consumia seu
interior. O dia correu em denso torpor, mas foi quando ela chegou da faculdade
e ligou a TV no filme maluco, que os pensamentos voaram longe a cada frase de
seu ator preferido. Silêncio. E tanto barulho. Palavras e mais palavras
gritando em sua mente, esmagavam suas esperanças sem dó. Rejeição. Esquecimento.
Seus maiores medos nunca declarados, mas que nasceram com ela, agora na sua
frente.
Ela se lembra de cada
aniversário com aquela ausência. Aquela falta. As festas na escola. Todos os
momentos em que ele não estava lá. E agora tudo de novo. Aquele vazio tomando
conta do seu coração. Ela sempre quis ser aceita, amada, querida, importante. Mas tudo nunca
foi suficiente. Insignificante desde sempre, ela nunca encontrou seu lugar no
mundo. Nada que ela faça bem, faça falta. Ninguém é mesmo insubstituível.
O filme acabou e
mesmo assim ela não conseguiu dormir. A vontade do desabafo fala sempre mais
alto e a impulsividade de menina ajuda a pôr teoria em prática. Dito. E feito.
Hora de dormir afogada na umidade do travesseiro.
Amanheceu lá fora. Com o modo automático
ligado, ela nem olha no espelho para não encontrar a vermelhidão e o inchaço
dos olhos. Dia difícil. Tudo o que ela não precisava, tudo o que não queria. Um
por um, os fatos chegaram ao longo do dia corrido. Cortes e feridas. O mundo
desabando lá fora. Em uma proporção bem menor do que dentro dela, é claro. O
caos instalado e mãos atadas. Sem condições de assistir às aulas. Deitada no
chão. Hora de dormir. Acabou. Ela não queria mais acordar.
Esforços. O mundo
cobra. Mas quem disse que ela tem força alguma? Vontade de correr, de sumir.
Apressada para o trabalho, ela sai sem olhar pra trás. Fugindo de mais qualquer
problema que possa aparecer. Considerações. De fato, o problema sempre foi ela
mesma? Sem nenhuma razão? Não. Com razão. Alguns erros talvez. Talvez muitos.
Mas com alguma razão, enfim. A revolta da humilhação se sobressaindo. Mas ela
não esteve sempre tão acostumada com isso? Bem treinada e vacinada? Também não.
Coração nenhum é imune ao abandono. O dela, em específico, foi ensinado a
aceitar, a se culpar, a se trocar por uma felicidade alheia qualquer. É comum a
ela derramar uma lágrima para ver um sorriso em outro rosto. Quem a
conhece um pouco sabe disso. E costuma usar. Obediência. Ela também sabe se
comportar. Uma fez o pedido feito, é aceito. Mesmo sem se conformar. Mesmo sem
deixar de se machucar. Sumir.
Apesar de tudo, de
todos os hematomas e pontos, o coração da menina ainda sabe amar. E não carrega
orgulho. Não sabe odiar. Tem memória fraca para o sofrimento recebido. Sem saber
se é certo com ela mesma, vai e faz. Fala. Ama de qualquer jeito, certo ou
errado. Encontra defeitos em si mesma, para apagar os defeitos dos outros.
Prefere aceitar a culpa mesmo não a tendo. Pode falar, ele sabe mesmo machucar.
Conhece seus pontos fracos e consegue enterrar a sete palmos o que já estava no
chão. Sem problemas, sem mágoa ou ressentimento. O que ela sente é intacto, e
isso é uma das poucas coisas boas que ela carrega. Sem direito de tirar. As
frases boas de amor são as que ficam em sua mente, junto com a pergunta: “Por
que mudou? Você se esqueceu?”. Passado ou futuro, ou passado do futuro, o amor
continua latejando forte dentro do frágil corpo de moça. Ela sabe que vai
conviver dias a fio com os olhos úmidos e a voz embargada. Ou não vai conviver
com nada mais. Outra cor de céu. Outra vida.
Quem sabe após o fato consumado, o amor renegado
se tornará eterno. Ela não estará aqui para ver.
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